20/12/2014


JERUSALEM JONES: CHUVA OBSCURA

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De repente eu percebi que estava sonhando. Isso nunca me aconteceu antes. Talvez fosse o fato de que Billy Andrews já estivesse morto há uns 10 anos e agora estava ali, na minha frente, bebendo na mesma mesa, comigo. Sinto muito, Billy. Ao perceber que era um sonho, passei a prestar atenção com mais calma ao lugar onde eu estava. Era um salloon, com certeza, mas havia algo de diferente nele. Quero dizer, além do fato de ser um bar em um sonho. Na minha mesa estavam o Billy e mais alguns amigos que eu não via há muitos anos: Johnny Perneta, que na verdade tinha as duas pernas; Sally Salt, uma antiga namorada; Solomon, que ninguém sabia o sobrenome; e Mark Cara de Fuinha. Conversavam animadamente entre si.

O restante do povo eu realmente não conhecia. Sem contar que era uma turma muito estranha. Mas, como era um sonho, talvez isso fosse de se esperar. No balcão, um cara todo de preto, que parecia não gostar de se pentear, bebia e conversava com uma garota que tinha umas pinturas estranhas no rosto. Ela também gostava de preto. Pareciam irmãos.

No mais, havia uma mulher gorda que era uma das coisas mais feias que já vi na vida, e ela parecia estar pelada. Um outro ou outra que eu não sabia se era homem ou mulher e uma espécie de monge, que ficava num canto com um livro enorme, aberto. Eu não conseguia ver seu rosto.

Correndo pelo bar, com um cão, estava uma garotinha toda colorida. Eu gostava dela. De vez em quando ela me olhava de um jeito estranho e me chamava de tio Jones. Haviam muitos outros, mas eu realmente nunca vira aquele pessoal. A não ser a bartender, ela era a Gail. Eu a conhecia de alguma das cidades por onde andei. Ela me disse até seu nome completo: Gail Neyman. Ela tinha um sotaque engraçado.

Eu estava distraído, analisando esse povo todo, quando Billy, o Morto, me dirigiu a palavra;

- Jones, vai nos contar a história que prometeu?

- Eu prometi?

- Sim, algo sobre chuva e um cavalo, uma coisa assim.

- Ah, lembrei. - e realmente tinha lembrado, da história, mas não de ter prometido contar. Estranhamente o cara despenteado e a garota com ele se viraram para prestar atenção. Os outros não deram grande importância e continuram apenas a beber ou a brincar com seu cão, como era o caso da garotinha colorida. Eu me sentia estranho naquele sonho, mas queria mesmo contar a história:

Não gosto de chuvas pesadas. Me lembram de quando eu nasci. E, não me perguntem como lembro disso. Só sei que estava em Pecos quando desabou uma dessas chuvas que parecem o dilúvio de Noé. Eu estava em uma pensão e quando a chuva mostrou que não ia parar tão cedo, eu fui procurar meu cavalo que comprara há pouco tempo. E não me olhem assim, eu comprei mesmo. Era o Chase. E eu gostara dele logo de cara. Não queria que ele se afogasse lá fora. Saí para pegá-lo e levá-lo para algum estábulo ou coisa parecida. Mas, não o encontrei. Na verdade, a chuva parecia não deixar eu vê-lo, nem a nada mais. Era uma chuva esquisita, pesada e escura.

Eu saí da proteção onde me encontrava e senti quando ela caiu sobre mim. Em questão de segundos eu estava molhado até os ossos. Parecia que eu estivera naquela chuva maldita desde que nasci. Minha roupa estava encharcada e tive de me livrar do chapéu.

Chase não estava no lugar onde eu o deixara. Eu não podia perder o cavalo, era o primeiro que eu comprava em muittos anos. O cara do cemitério me vendeu barato, mas com o pouco dinheiro que eu tinha, ainda assim era caro. Pensando naquele momento, me perguntei quem vendia cavalos a beira de um cemitério. Não devia atrair muitos clientes.

>Mas, deixei esses devaneios de lado e continuei procurando Chase pelas ruas da cidade. A visão falhava devido à chuva e alguns lugares começavam a alagar. A água era preta. Não fedia, nem nada. Era apenas água... preta. Ninguém mais parecia se incomodar com aquilo. Por um momento me perguntei se apenas eu enxergava a água daquela cor.

Estava quase desistindo da procura, já que daquele jeito seria impossível, quando escutei um relinchar que eu já conhecia: Chase! Fui na direção do som, e avistei, entre a chuva negra que caía, um vulto de um cavalo a alguns metros de distância. Porém, na frente dele, haviam quatro caras perfilados. Não entendi o significado daquilo, e disse apenas:

- Podem me deixar passar e pegar o cavalo? Ele é meu. Podem acreditar. - falei isso gritando, já que a chuva tornava difícil a comunicação. Eles pareceram escutar, e os quatro falaram ao mesmo tempo.

- Acreditamos sim. Mas o cavalo é nosso. - aquilo arrepiou minha espinha de tal forma que gelei mesmo já estando totalmente frio por causa da maldita chuva. Tinha água nos meus olhos, boca, nariz, bunda. Em tudo. E agora eu corria o risco de perder meu cavalo novo.

- Olha, se o cavalo era de vocês, e foi roubado, não tenho culpa. Podemos ir até o xerife e ele pode encontrar o cara do cemitério para que resolvamos a situação.

- Já está tudo resolvido - continuavam falando em coro, com aquela chuva tornando suas vozes mais estranhas ainda - o cavalo é nosso, Jones.

Depois que os quatro disseram isso, um deles disparou correndo em minha direção. Não entendi o porque de tanta confusão por causa de um cavalo, mas não podia ficar ali sem reagir. Minhas armas não prestavam para nada. Estavam encharcadas. Quando finalmente o louco se aproximou o suficiente, eu levantei a perna direita para o pé encaixar certinho no peito dele. Ele caiu e eu também. Eu retirei o sobretudo molhado e me preparei para o pior.

Os outros três fizeram um círculo a minha volta, enquanto o que levou um chute nos peitos se levantava. A chuva parecia mais furiosa. e eu mal conseguia enxergá-los. Pelo menos atirar não podiam também. Pelo jeito ia ser na base da porrada. O primeiro e o segundo vieram correndo, eu agarrei o punho do primeiro e soquei a cara do segundo com o mesmo. O terceiro já vinha para ajudar. Me acertou no estômago, mas eu consegui evitar que fosse pior. O soco na cara veio sem eu esperar. Cambaleei para trás e quase caí. Fazia muito tempo que eu não enfrentava quatro. Meu nariz devia estar quebrado.

Antes que eu pudesse recuperar todo o controle da situação, dois me seguraram os braços e o que eu chutei devolveu a cortesia e me chutou nos peitos. Eu não caí, porque os dois malucos me seguravam. Antes que o quarto viesse me dar um chute também, eu me agachei arrastando os dois comigo e eles bateram suas cabeças. Fiz questão que fosse com muita força. Iam demorar um pouco pensando em como duas cabeças doem mais que uma. Os dois restantes se abalaram, mas não por muito tempo. Resolveram apelar para facas que, mesmo molhadas, funcionavam.

Quando o primeiro corte no braço veio, eu despertei como se a queimação fosse um balde de água fria. Eu estava perdido na briga até aquele momento. A chuva lavava o sangue e o sangue me dava nova energia. Agarrei o punho de um deles e fiz o que devia ser feito: torci e ele soltou a faca. Me abaixei para pegar no mesmo instante que o segundo vinha me esfaquear a garganta. Ele tropeçou em mim, eu levantei e levei-o junto. A queda foi fatal, com sua faca entrando pela barriga. Aquele de quem eu pegara a faca, arregalou os olhos. Os dois da cabeçada também procuravam facas em suas roupas. Eu joguei a faca que peguei em um deles, a chuva me atrapalhou e eu errei.

O de pulso quebrado ainda tentou revidar. Mesmo com o braço sangrando, eu dei um soco com toda a força que ainda me restava e o levei a nocaute. Não ia mais poder dar outro soco daqueles naquela briga. Os idiotas da cabeçada acharam suas facas. Eu peguei uma perdida no chão. Dois contra um. Dançavamos a dança da morte na chuva negra. Atrás de mim, Chase bufava nervoso. Parecia querer ajudar, mas não podia. Não notei se ele estava preso ou algo assim. A chuva parecia que não ia parar nunca mais.

Os dois correram para me esfaquear. Eu joguei a faca de novo, em um deles. Acertei o olho do que estava mais adiantado. Tinha mirado no peito. Dane-se, não vou reclamar. O segundo veio gritando, com a água da chuva entrando por sua boca, e fazendo um barulho bizarro. Eu tentei desviar, mas tropecei num dos malucos no chão e me desequilibrei. O desgraçado acertou a faca até o cabo bem no centro do meu peito. A minha faca, no entanto, estava enterrada bem no centro do seu crânio. Puro reflexo. Eu ia morrer, mas ia morrer feliz.

Ele caiu, e eu também. Chase bufava alto e batia os cascos na lama. Parecia inconformado. Bufava alto. Acima, até mesmo, da chuva. Então, ouvi uma voz no meio da chuva obscura:

- Ok, ok, cavalinho. Você tem razão. Ele acertou o enviado primeiro. O cavalo é todo seu, senhor Jones. Afinal, nem tudo se paga com dinheiro neste seu mundo, meu caro homem. Não que eu vá devolver suas moedas, nada disso. Mas, Chase não poderia ir assim, tão barato. A chuva vai parar em breve. Os enviados irão com ela. Vá para casa sr. Jones, e leve Chase, ele parece estar faminto. Adeus, meu caro amigo.

- Não... sou... seu... amigo.

- Sr. Jones, eu falava com o cavalo.

Eu nunca tive certeza, mas, parecia a voz do homem do cemitério. A chuva e a faca no meu peito não me permitia vê-lo direito. Quer dizer, a faca que antes estava em meu peito. Quando ele parou de falar, e foi embora, não havia mais nada lá. Nem faca, nem ferimento. Os caras ainda

Chase veio na minha direção, todo molhado, e me lambeu. Eita cavalo caro da porra. Subi nele e fui na direção da pensão. A chuva continuava, mas era normal agora. Uma chuva como outra qualquer, e eu levantei o rosto e me deixei lavar por ela. Chase parecia fazer o mesmo.

Quando terminei a história, o bar estava vazio, incluindo minha mesa. Quase vazio, quero dizer. O homem despenteado estava na porta, se preparando para ir embora e, olhou para mim com aqueles olhos estranhos e disse apenas:

- Belo cavalo, Sr. Jones.

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