16/12/2014

Quando a pátria é o pensamento

Depois de perder seu país e sua família para o nazismo, o filósofo Vilém Flusser buscou no Brasil caminhos de liberdade e esperança


  • Nascer em 1920 na capital da jovem Tchecoslováquia, numa família de artistas e intelectuais judeus, parecia um privilégio histórico. Praga tornava-se um importante centro cultural da Europa: cidade cosmopolita, composta basicamente de tchecos, alemães e judeus, receptiva aos estrangeiros e admirada por eles. Foi ali que Vilém Flusser passou a infância e a adolescência, antes de se tornar um homem sem chão.
    Desde o início do século, a Universidade Carolina – onde seu pai lecionava matemática e física e o próprio Vilém ingressaria no curso de Filosofia – conquistara notável reconhecimento científico. Grandes personalidades foram acolhidas na instituição: entre 1901 e 1906, Franz Kafka estudou na Faculdade de Direito; em 1911, Albert Einstein tornou-se professor de física teórica por 16 meses; o filósofo Edmund Husserl aceitou vários convites para palestrar lá; e em 1926, professores tchecos e estrangeiros fundaram o revolucionário Círculo Linguístico de Praga.
    Flusser cresceu imerso naquela atmosfera multicultural e poliglota. Em sua autobiografia, descreve a cidade natal: “A característica de Praga é que sua marca supera todas as diferenças nacionais, sociais e religiosas. Se tcheco, alemão ou judeu, católico, protestante ou marxista, burguês ou proletário: pouco importa. Antes de mais nada se é praguense. Praga é clima existencial, e todos os nivelamentos, com suas múltiplas tensões, ocorrem em tal clima”.
    A fértil convivência de várias culturas e nações seria bruscamente interrompida com a ascensão do nazismo. Em 1938, a Tchecoslováquia foi ocupada pelo exército alemão. A família de Flusser recebeu convites para sair do país, mas entre eles ninguém acreditava na iminente catástrofe. O único que partiu foi Vilém, com a ajuda de sua namorada e futura esposa, Edith Barth. Ele e a família de Edith se refugiaram primeiro na Inglaterra e um ano depois, em 1940, chegaram ao Brasil.
    Ainda no porto do Rio de Janeiro, Vilém soube da morte do pai. Pouco depois, veio a notícia do falecimento da mãe e da irmã. Todos assassinados nos campos de extermínio. Flusser comenta sua fuga e salvação com palavras amargas: quando decidiu abandonar o país, sacrificou a dignidade em favor da sobrevivência do corpo. Sua vida se tornou sem fundamento, sem chão, bodenlos em alemão – o título de sua autobiografia.
    Os primeiros anos no Brasil foram bastante penosos. Os Barth e o casal Flusser passam a residir em São Paulo e Vilém tenta sustentar a família, agora com filhos, como funcionário de uma empresa tcheca de importação e exportação, ofício para o qual não tinha a menor vocação. Ao longo dos anos 1950, sua situação começa a melhorar: trabalha no texto sobre a história de ideias do século XVIII (entre 1950 e 1951); conclui o ensaio Século 20 (1957)e escreveA história do diabo (entre 1957 e 1958). Nessa época abandona suas atividades comerciais, aproximando-se de um grupo ligado ao Instituto Brasileiro de Filosofia. Nunca deixa para trás, entretanto, sua condição de imigrante, entendida como uma situação existencial particular: “A imigração é processo dialético, no qual o imigrante recebe o impacto do ambiente e o ambiente, o impacto do imigrante. O resultado do processo, se coroado de êxito, é a alteração de ambos os fatores”.
    Como intelectual, filósofo e escritor, focou seu campo de engajamento na língua – a língua portuguesa. O português brasileiro era para ele matéria bruta que exigia um autêntico trabalho de poeta. Achava-o jovem e essencialmente diferente do português original, cuja linearidade, que provém do latim, rompia-se nos trópicos ao incorporar estruturas linguísticas dos idiomas indígenas, africanos e do japonês. Esse novo tipo de língua deu ascendência a um novo tipo de pensamento e, com isso, a um novo tipo de homem.
    O engajamento de Flusser na cultura brasileira foi um verdadeiro desafio, e a recepção de suas atividades comprova que o cumpriu de maneira extraordinária. Nos anos 1960, colaborou com a Revista Brasileira de Filosofia e publicou regularmente seus ensaios no suplemento literário do jornal O Estado de S. Paulo e em outros periódicos. Em 1962, Flusser torna-se membro do Instituto Brasileiro de Filosofia e passa a ensinar, principalmente, história da filosofia, filosofia da linguagem e filosofia da ciência na Universidade de São Paulo (USP), no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, e na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Seu primeiro livro, Língua e realidade, publicado em 1963, é uma obra-prima de seu período brasileiro. A ele se seguiram A história do diabo (1965) e a coletânea de ensaios Da religiosidade (1967). Na mesma época foi nomeado cônsul brasileiro para projetos de colaboração cultural nos Estados Unidos e na Europa.
    Flusser criou forte amizade com várias personalidades da cena cultural. Promovia encontros semanais no terraço de sua casa paulistana na rua Salvador Mendonça, no Jardim Europa. Entre os amigos e frequentadores do terraço estavam o poeta Haroldo de Campos, a artista plástica de vanguarda Mira Schendel [Ver RHBN no. 92], o engenheiro Milton Vargas, infatigável parceiro em debates filosóficos, Vicente Ferreira da Silva, um dos poucos filósofos brasileiros que Flusser reconhecia e admirava (embora muitas vezes dele discordasse profundamente) e sua esposa Dora Ferreira da Silva, talentosa poetisa. Todos misturados com jovens estudantes, geralmente amigos de seus filhos, Dinah, Miguel e Victor.
    Um de seus amigos mais famosos foi o escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), com quem se encontrava no Palácio do Itamaraty. Flusser lembra de longas conversas com o escritor, desvendando tanto o seu lado humano como a grandeza de sua contribuição à língua e à cultura brasileiras. “E são estas as ‘veredas’ rosianas: viagens em busca de meta. E é este o interior brasileiro rosiano: o território da salvação humana, ‘utopia’, portanto lugar não encontrável em mapa. Pois tal utopia vive na memória dos brasileiros como realidade concreta, e deve ser preservada. É método para ‘salvar sua alma’. Mas método periclitante. Porque o diabo que não existe, e que se manifesta poderosamente na realidade atual brasileira, está sempre à espreita (Niquites) para devorá-lo. Esta é a mensagem ‘brasileirista’ de Rosa”, escreveu.
    Os encontros com Miguel Reale (1910-2006), um dos líderes do movimento integralista, aconteciam em sua biblioteca. Flusser comentava que o anfitrião estava quase sempre cercado de admiradores e carreiristas, mas geralmente conseguiam conversar sobre temas que interessavam aos dois: historicidade, responsabilidade e liberdade. Para ele, Reale era um dos poucos brasileiros dedicados de corpo e alma ao ideal da liberdade, mas apesar de suas convicções nobres, como político agia a favor da tecnocracia – o desenvolvimento da economia de maneira técnica, apostando em uma libertação futura. Neste paradoxo, Flusser percebe sua tragédia: “ele se propõe a sacrificar-se em prol da sua sociedade”.
    Os anos da ditadura foram complicados para políticos, estudantes, intelectuais, artistas, pessoas comuns. Flusser não sofreu nenhuma ameaça direta, porém seus horizontes começaram a se restringir palpavelmente no final da década de 1960. Importantes meios de comunicação, imprescindíveis para ele, fecharam-lhe as portas – como O Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo e a USP. Os que restaram limitaram suas atividades cada vez mais. Era evidente que Flusser, por seu gênio forte e ideais ousados, passara a ser desconfortável para muitos. E pior, ele próprio desconfia do sentido de seu engajamento no Brasil. Numa das cartas para Dora Ferreira, em 1975, escreve: “comecei a duvidar da minha ‘vocação’. Como querer provocar dúvidas na juventude, que é podada se duvida? E como querer provocar dúvidas num contexto que, talvez, ‘objetivamente’ exige ‘pé na tábua’?”
    Em 1972, Vilém e Edith retornaram para a Europa. Mudaram-se para Merano, uma pequena cidade na Itália, e depois para Robion, na Provença francesa, onde Flusser morou pelo resto da vida, até 1991.
    Mesmo distante do Brasil e depois de conquistar fama na Alemanha, Vilém Flusser nunca deixou de atuar no ambiente brasileiro. Atendia com frequência a convites para palestras e continuou a escrever em português até a sua morte. Em 1979, a editora Duas Cidades publicou a coletânea de ensaios Natural:mente e, em 1983, Pós-história. Seu livro mais famoso, A filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia, de 1983, foi traduzido para o português pelo próprio autor e publicado no Brasil em 1985.
    Vilém Flusser nunca adotou o Brasil como segunda pátria. Mas o país e seu povo representaram para ele um campo de engajamento e de esperança, dos quais jamais desistiu.  

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